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Espetáculo “Ítaca” - com Thiago Andreuccetti

  • Foto do escritor: Rafael de Barros
    Rafael de Barros
  • 7 de fev.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 5 de jun.


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Em cartaz no Sesc Belezinho, o espetáculo “Ítaca” é um solo de palhaço que tem extremo diálogo com o “Mastro Cubulto” [1]. O próprio aparelho nos traz a constante vivência de instabilidade. E com um trabalho corporal refinado, Thiago cria o balanço do mar no palco, aliado a melodia de Dorival Caymmi, que nos recebe quando entramos na sala, “Itaca”, é uma viagem ao mar.


Com direção de Luciana Viacava e dramaturgia de Nereu Afonso, o espetáculo mostra como as referências de sentimentos e necessidades básicas do ser humano, nos colocam próximos e permitem que viajemos juntos em uma história, ou melhor, em uma Odisséia. Respirar e comer, sentir medo, ansiedade e solidão, embarcamos juntos com “Santiago”, o marinheiro, que apesar de excêntrico, tem muita experiência com o mar.


Desfrutamos da trilha sonora de Alexandre Maldonado e a concepção de luz de Giuliana Cerchiari, que são de extrema importância para o trabalho, já que o palhaço em cena dialoga com todos esses elementos. Segundo as informações disponíveis no material do espetáculo, as obras “O Velho e o Mar”, de Hemingway, a “Odisseia” de Homero e o poema homônimo de Konstantino Kavafis”, são inspirações para o que é apresentado.


Curiosamente, Ítaca é uma Ilha na Grécia, mas que na peça dá nome a própria embarcação. O jogo do local seguro ser o barco e quando ele é destruído, termos a Ilha como o local do “devir”, muda a nossa referência do que é estático e do que é imprevisível. Como é digno de um palhaço, Thiago nos move em nossas certezas e incertezas.


Um trabalho corporal primoroso, que cria em cena diversas dinâmicas que nos levam longe na imaginação. Criamos uma baleia que é sua amiga, vemos o peixe, o barco gigantesco que passa, sentimos o frio, o medo, a dor da pancada em seu dedo do pé. Sorrimos, porque sabemos de todos os problemas que o palhaço vive ali, ao mesmo tempo que encontramos com frequência os olhos dele em nossos olhos, que nos conta que “está tudo bem”. Mais que isso, nos mostra que a própria vida é assim.


Aliás, a comunicação verbal é feita por um dialeto, chamado de “Grammelot”. Uma linguagem que tem por intuito comunicar muito mais pelas entonações, sons, qualidades sonoras, do que pelo significado literal de cada palavra. É possível perceber o trabalho aprofundado nesse elemento, já que existem alguns momentos em que palavras são ditas, pontualmente, e carregam uma potência enorme. Praticamente toda a comunicação que seria falada, é feita através do grammelot, pontuando esse repertório vasto do artista em cena. É como se encontrássemos mesmo um marinheiro perdido no litoral brasileiro, que veio com sua embarcação do Mar Mediterrâneo. Mas não é que ele tenta definir de onde veio, é que sentimos que ele pode ser de qualquer lugar.


Como essa comunicação busca a síntese da palavra e a comunicação feita também pelas melodias vocais de cada som, quando “Santiago” toca seu pífano, uma flauta feita de bambu, nos traz o preenchimento que aqueles sons podem fazer. Paramos para ouvir seu eco junto ao mar, criando um espaço em cena, que constrói a solidão do palhaço que conta como é estar sozinho em um barco ou perdido em uma ilhada tentado pedir ajuda.


Santiago se atrapalha, esquece onde deixou a flauta, depois que lembra, esquece que o lugar que tinha guardado a flauta poderia ter deixado ela imprópria para ser colocada na boca para tocar, vemos tudo isso. Rimos juntos! Chamo essa possibilidade na palhaçaria de “desastre”, uma linha difícil de realizar, mas que carrega uma potência cômica, onde a tentativa de resolução de um problema, cria outro problema pior, e a situação vai piorando exponencialmente, e consequentemente, rimos mais. Ao sentir uma dor muito forte no pé, Santiago joga toda a água potável que lhe restava em uma garrafa para aliviar a dor, depois se arrepende, com sede, uma criança sugere: “bebe a água do mar” – o palhaço sugere que não dá para beber – rimos de novo. A beleza da inocência da sugestão, é acompanhada da poesia que fez a criança ter visto a água do mar.


Acompanhamos a subversão da vitória como única possibilidade de um jogo. É como se o personagem soubesse que talvez ele não ganhe, que talvez não chegue seu pedido de socorro, que talvez o barco imenso não veja alguém pedindo ajuda na Ilha, mas que esse também não é o único motivo de jogarmos, não é o único motivo de estarmos vivos. Talvez o motivo seja a própria vida. E as companhias das alegorias que vão se mostrando ali naquele mar.


Uma outra criança próxima de mim, com cerca de 3 anos, pede para a mãe: “deixa eu ir ali no mar nadar com ele”, a mãe responde: “não pode ir no palco, você não é artista”. A insistência veio em alguns outros momentos, como quando o céu estrelado aparece ao fundo: “deixa eu pegar uma estrela, mãe”. E a mãe diz “não”, insistente em obedecer ao aviso dado no início do espetáculo de que não era permitido que crianças adentrassem no palco.


Eu suspirei com aquela criança. Ela não via mais o palco, nem o Thiago. Ela via o mar, onde estava perdido o “Santiago”. Naquele momento, eu queria ver só o mar também. Assim como ela não viu que o efeito do céu ao fundo ficou bonito, e que dava mesmo a impressão de um céu estrelado. Ela viu o céu, e mais que isso, viu que era capaz de pegar uma estrela – assim como fez “Santiago” para iluminar sua casa à noite. Já que tinham algumas que estavam ali, pertinho, à alguns passos da sua cadeira e na altura ideal para que ela mesma alcançasse com a mão.


Pensei que o teatro era isso, o circo era isso, a palhaçaria era isso. Criar um mar, um céu, um devir, um problema, os risos, as soluções sagazes, uma brincadeira em uma sala. Viajarmos por onde o convite vier para nos levar.


O espetáculo segue em temporada no Sesc Belezinho em mais dois finais de semana, dias 08 e 09, 15 e 16 de fevereiro. Os ingressos estão disponíveis no site do Sesc SP.


[1] Poderíamos imaginar um Mastro Chinês em cima de uma base grande e pesada, que nos recorda o brinquedo “João Bobo”, possibilitando uma movimentação excêntrica ao artista em cena. Além das acrobacias que executa com maestria. 


Texto: Rafael de Barros / @rafa.debarros . email: rafael.debarros@usp.br

 

 
 
 

1 Comment

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Angela
Feb 08
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O texto de vcs está ótimo. Pra quem já assistiu a ÍTACA, o texto nos transporta para o palco novamente e pra quem ainda não viu, vai lembrar de cada palavra escrita aqui.

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