Contos de Cativeiro - de Orum aiyê Quilombo Cultural (GO)
- Marília Mattos

- 15 de ago.
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Atualizado: 16 de ago.

Teatro do Sesc Ipiranga, 15.08.2025 – Programação do CIRCOS - Festival Internacional de Circo do Sesc
As portas do teatro se abrem, o artista está ali para receber cada pessoa do público, já apresentando o espetáculo com afeto e delicadeza. Ele anuncia a importância de estar neste espaço de visibilidade com um trabalho que atua contra a intolerância religiosa. Sua fala é tranquila e nos aproxima dele. Aos poucos os nossos olhos vão percebendo algumas camadas da cenografia, que acompanham a beleza e a delicadeza com que fomos recebidos desde que chegamos. E é a partir da construção desse ambiente que ele nos apresenta a primeira personagem. Há uma troca de figurino em cena, que acompanham uma movimentação que sugere um ritual, enquanto seu corpo e sua voz se transformam. Pai José das Matas Escuras se faz presente, e se coloca a contar histórias do povo negro em uma versão relativamente - e infelizmente - rara: com ponto de vista afrocentrado. É de uma riqueza de texturas e inteligências, que os contos vão se entrelaçando e trazendo os quilombos, a resistência e toda uma história de luta por um viés da coragem e da estratégia. Em algum momento se chega a falar de dor, mas o foco não está nem perto dela.
E esse Preto-Velho, como é conhecido, nos apresenta Olodumaré. As luzes vão se modificando e revelando novas partes do cenário e de indumentárias ali penduradas. De repente o artista está num novo corpo, com uma nova movimentação e voz, e estamos ali, envolvidos com ele. Ele veste uma saia – um dos deleites visuais do espetáculo, quando a saia desce dos céus e o veste sem esforço – e ele sai dançando revelando com mais destaque as folhas que já estavam no chão, e agora fazem uma sonoridade que deixa tudo ainda mais encantado.
Pai José retorna, com novas histórias nos introduz a novos seres. E a cada novo elemento, ele vai questionando as formas hegemônicas do mundo branco ocidental com bom humor, sagacidade e graça. Até que ele se transforma no inconfundível Zé Pilintra – ainda assim introduzido ao público, para ninguém ficar de fora do encontro. Este nos traz junto com a história questionamentos para o mundo presente que vivemos. Quem você é? “Só é escravo quem tem medo da morte.” Nos pergunta se somos escravos. Respondemos que não. E de seu trabalho? Um silêncio misturado com risos de derrota um pouco abafados. “Só é escravo quem tem medo da morte.” Relata a história do patrão e dos ratos, e traz ali um pouco do funcionamento do capitalismo para nos deixar sempre presos. “Só é escravo quem tem medo da morte.” A cada repetição dessa fala uma badalada no peito.
Eu mesma até agora estou me perguntando quão rata eu tenho sido. Uma das perguntas a um moço da plateia deu um fôlego ao artista que perguntava a cada um o que era, e cada qual, muito tímido, não sabia o que dizer. Até que mais uma vez ele perguntou, e esse moço respondeu: eu sou vagabundo! De boca cheio e coração tranquilo. Esse moço entendeu foi tudo. O público suspira e ri, o artista celebra. Confirma de alguma forma que o moço está certo, e traz para o público o que a sabedoria daquele “vagabundo” trazia. Se você conhece o sistema, não deve se dobrar a ele. O sistema não quer preto cantando, vivendo bem, sem se submeter ao trabalho explorador dos brancos.
No trabalho, tal como aqui, ele não opõe indivíduos pretos a indivíduos brancos, mas apresenta um sistema histórico de opressão e traz as pessoas que não conhecem este universo de orixás e figuras para perto com doçura, permitindo um conhecimento de vidas e histórias de forma afrocentrada, gerando uma reconfiguração do olhar para as histórias que conhecemos de “deus” e de “mundo”. Tudo com muita beleza e encantamento. Um espetáculo profundo e marcante, que precisa circular pelo nosso país, e seria ainda mais especial, em nossas escolas. Não cheguei a descrever, mas dentro de toda essa fluidez o artista ainda sobe no trapézio, no tecido, dança, e manipula uma bola que as crianças próximas a mim chamaram de “bola de cristal”. Um espetáculo de circo-teatro belíssimo, com histórias e habilidades, criado por pessoas pretas da região Centro-Oeste do Brasil, para todas as pessoas.





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