Lona Preta e o “Circo da Lona Torta”, um horizonte possível.
- Rafael Santos de Barros
- 13 de out.
- 9 min de leitura
Por Rafael de Barros[1]

foto: Sérgio Fernandes
O espetáculo “Circo da Lona Torta”, da Trupe Lona Preta[2], esteve em cartaz no Sesc Pompéia, durante três finais de semana consecutivos, estreando no dia 26 de setembro e indo até o dia 12 de outubro.
Tudo começa com a entrada do palhaço “Rabiola”, e a questão é colocada já de início: “A lona do circo é nossa” e querem tirar isso da gente. Então entra toda a Trupe! A Trupe Lona Preta é composta por cinco artistas: Alexandre Matos, Henrique Alonso, Joel Carozzi, Sérgio Carozzi e Wellington Bernado. Porém, nesse espetáculo são somadas mais 12 artistas, são elas: Abraão Kimberley, André Schulle, Danilo Cavalcante, Gui Awazu, Mizael Alvez, Rachel de Boa. Músicos: Clara Kok, Hiles Moraes, Jessica Evangelista, João Fernandes, Mateus Andrade, Otávio Luiz. Num total de dezessete pessoas em cena. Isso, em si, já é um acontecimento. A Trupe tem uma trajetória de Teatro de Grupo, e a dinâmica de ser capaz de fazer uma montagem com tantas pessoas, é extremamente complexa, por isso, surpreendente.
Com música ao vivo tocadas por todas as pessoas, cenas cômicas, diálogos afinados, habilidades circenses, como: Malabarismo, Acrobacias, Perna-de-Pau, a presença dos bonecos de Mamulengo, o espetáculo é um deleite sobre a cultura circense brasileira.
Notamos que “A Lona”, é uma metáfora da “terra”, e a disputa de “ficar na lona”, a luta por terra! A Luta de Classes é o tema central desse espetáculo. Os artistas em cena se dando conta das contradições do Capitalismo que tiram deles a possibilidade de habitar aquele espaço, que determina quem é o “dono” daquele espaço e quem são as pessoas que vão proteger para que isso continue assim. Perguntam para o público: “a gente sai ou a gente fica?”, o público responde “Fica!”. A pergunta é feita através de uma música, nos lembrando do distanciamento brechtiano, quando a música nos ajuda a não estabelecer uma identificação emocional com o tema, mas sim a refletir com certo distanciamento sobre os temas que vão sendo colocados.
Mas as contradições não terminam com uma decisão de se estabelecer no espaço. Aparecem novos problemas, novos posicionamentos, novas barreiras que vão sendo atravessadas. As contradições são colocadas em cena, o posicionamento de quem acha que eles devem desistir daquela disputa, ao lado de quem diz que vai lutar até o final, nos coloca para também pensar, e observar, diversos discursos sobre o tema. Esse elemento de colocar em cena as contradições, assim como o elemento da música como distanciamento, nos mostra a incidência do teatrólogo Bertold Brecht[3]. Além desses elementos já citados, também é percebida a influência de suas reflexões, como princípios marxistas.
"Transformar a relação palco-plateia num experimento onde as contradições sociais e históricas pudessem ser trazidas ao espetáculo. Esta tendência foi aprofundada após o exílio, em diversos trabalhos e experiências, o que levou Brecht a escolher como mais apropriado para o seu teatro a expressão “teatro dialético” ao invés de “teatro épico”. Mas, ainda em Berlim, já se podia ver Brecht utilizar a contradição dialética como um elemento da montagem, seja na criação de personagens, seja na construção de situações, visando desestabilizar as identificações dos espectadores. Eram apresentadas situações sociais e suas contradições, em contextos de montagem em que esta contradição era destacada, distanciada, não na forma de um “teatro de tese” – no sentido que Pavis coloca como “dar a aula” (PAVIS, 1996, p. 385), pois não se tratava simplesmente da apresentação de conteúdos, ou apresentar reivindicações diretas, à maneira do agit-prop13 – mas na apresentação de um contexto múltiplo e heterogêneo de articulação dos elementos possibilitando mais de uma leitura por parte do espectador." (JUNIOR, 2014, p.32)
E é possível levar esses temas em um espetáculo de circo, com aprofundamento e ainda assim gerar um espetáculo divertido, extremamente engraçado e instigante? O Lona Preta nos mostra que é. Mais do que isso, é possível colocar as contradições de maneiras que gerem graça, mas sem ser leviano com o problema. Colocar as contradições em cena, inclusive do campo da própria esquerda e poder questioná-los. Entendem também o riso como uma maneira de reflexão e distanciamento. Isso é algo que vale ressaltar, depois dessa introdução sobre os conceitos colocados no espetáculo. O trabalho deixa o assunto passível de diálogo, deixa o público interessado em saber o tema. E, acredito profundamente, que isso não é à toa.
Porque não seria possível chegar nesse nível de sofisticação, sem ter se debruçado nessa maneira de conseguir colocar esses temas, em um espetáculo de circo e que tenha tanto diálogo com o público. E tem um ponto fundamental: o espetáculo quer diálogo! Não busca uma posição superior ao público, que traz verdades ou mensagens. E, para mim, a linguagem popular[4] auxilia muito nesse caminho. Mas também é possível percebermos um elemento muito interessante sobre a linguagem popular, o campo que o boneco de Mamulengo ocupa.
Antes, um adendo, é muito bonito ver a posição do Mestre de Mamulengo, Danilo Cavalcante, no espetáculo. Seu trabalho é exaltado e tem um protagonismo respeitável.
O Mamulengo, entra no espetáculo como uma figura que dialoga com os “diferentes mundos”. Depois disso, mais adiante, uma voz em off diz ser a dona daquelas terras. Os que estão na lona soltam: “Você é o Zuckerberg? O Elon Musk?...” e a voz responde: “Não, sou o chefe deles todos”. E então aparece outro boneco de Mamulengo, o Diabo, gerando mais risos. A sucessão de personagens são os que irão proteger aquelas terras e os artistas tentam ocupá-la de várias maneiras. Veja, aqui temos uma contradição, porque os bonecos são engraçados, convencem em certos momentos com argumentos controversos e fazem essa representação dos “tiranos” e daqueles que defendem a terra. Me soou um pouco como esse campo da política fascista e da direita brasileira, que é “popular”, que “fala com o povo”, mas que no fundo, estão defendendo os próprios interesses e o interesse do Capital, como Bolsonaro, Pablo Marçal e tantos outros. Que não se importam com a vida das pessoas. Então esse tensionamento das figuras que são cômicas, mas que estão prejudicando as pessoas em benefício próprio, é colocada nesse universo. Tanto que quando o palhaço “Rabiola”, cai no mundo dos Mamulengos, ele perde boa parte do seu posicionamento, que era mais radical.
Então podemos citar também a Dramaturgia, que vai entrelaçando essa narrativa, com números de habilidades circenses que são inseridos no contexto do espetáculo, além da própria música que é tocada ao vivo, por vezes com vozes e outras com músicas instrumentais que dialogam profundamente com a cena. É possível notar a cena de malabarismo com bolinhas, por exemplo, como o efeito de muitas pessoas em cena foi explorado, porque não há a preocupação de um grande truque, porque eles sabem: colocar todas essas pessoas fazendo três bolinhas, conduzidas pela música que é tocada e acentuada com as bolinhas, já é uma demonstração de habilidade. E ao final o número ainda cresce, aumentando a quantidade de bolinhas, até terem 4 pessoas em cena, com duas jogando até cinco bolinhas.
Na execução das técnicas durante o espetáculo, me chamou a atenção do que vou nomear aqui de “não tentativa de figuração”. O que quero dizer com isso, é que as bolinhas de malabares, eram bolinhas de malabares, as claves, eram claves, as pernas-de-pau, eram elas mesmas, e os saltos acrobáticos, também. Digo isso porque existe uma propensão de espetáculos de circo contemporâneo que se valem de uma figuração do objeto utilizado na técnica, em cena. E isso é uma escolha estética e não estou colocando demérito nela.
Porém, ao ver o espetáculo “Circo da Lona Torta”, me dei conta, como espectador, de algo que eu também refletia nas cenas. Ao optar por “não figurar”, também existe uma abertura de possibilidade imaginativa e narrativa. Então eu poderia criar uma imaginação de que as bolinhas de malabares são os pensamentos daquelas pessoas que estão lutando pela “lona”, posso pensar que as claves são os planos e ideias que eles vão trocando entre eles para conseguir elaborar um plano de tomada da terra, posso ilustrar que a segunda altura é uma metáfora da força do coletivo, do poder da auto estima e que a perna-de-pau poderia ser o conhecimento, o estudo, que leva aquela pessoa para lugares que ela não conseguia ver com um horizonte mais distanciado e enfrentar um inimigo maior que ela.
E veja, o bonito disso é que essa leitura pode não ser a da pessoa que estava do meu lado, mas ainda assim, é um convite para uma possibilidade de metáfora. Como espectador, me sinto atraído a cultivar essa metáfora, porque o espetáculo busca diálogo com o público o tempo todo, então também me convida a entender algo, pois a cena também dialoga com o público em outras camadas. Talvez esse seja um ponto importante desse espetáculo em diálogo com o que estamos buscando como contemporaneidade do circo: existem discursos que estão imbricados no fazer circense, existe uma narrativa imaginativa possível, quando a opção é manter as bolinhas de malabares, como sendo “elas mesmas”. E assim, ir além. Não preciso, necessariamente, figurar esses equipamentos, já que isso pode acabar por limitar o significado dele, já que tendo essa abertura, pode significar muitas coisas mais.
Saio do espetáculo aos prantos. Porque também existe uma montanha russa de emoções, e é muito forte como somos conduzidos para isso. A disputa termina, como terminam quase todas as desapropriações de terra no nosso país “um corpo negro caído no chão”. E um samba é entoado: “Quando eu canto, é para aliviar meu pranto e o pranto de quem já, tanto sofreu...”. Um tamborim, um surdo e as vozes entrando me fizeram chorar ali, assistindo ao espetáculo, quase dentro dele. Por saber que aquela cena é parte da história desse país.
"Na virada do III milênio, são cinco séculos do “descobrimento” da América, do Brasil. O tempo passou, mas não passaram os massacres contra os trabalhadores, contra os meninos de rua e meninos do campo. Não bastara o sofrimento impingido a eles pelo salário mínimo, más condições de vida e desemprego puro e simples, ainda são protagonistas de episódios como 130 Candelária, Carandiru, Eldorado do Carajás, Corumbiara, Favela Naval e tantos outros locais que serviram de palco para massacres e execuções." (MESQUITA, 2001, p.230).
E a música segue, com os artistas saindo de cena, carregando essa pessoa...
“Canto para anunciar o dia Canto para amenizar a noite Canto pra denunciar o açoite Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia Acendo no coração do povo A esperança de um mundo novo E a luta para se viver em paz”
João Nogueira e Paulo Cezar Pinheiro
Fui convidado para entrar e pensar sobre esses temas todos, fui convidado a escutar e a opinar também e me emocionei. Fui convidado como todo o público é convidado durante todo o trabalho. Emoção em ver tanta beleza, em várias camadas possíveis do trabalho.
Depois de terminar, me vinha uma frase na mente: “Isso é um horizonte possível para o Circo Contemporâneo Brasileiro”. Uma estética que nos mostra a possibilidade de fazermos um circo de qualidade, profundo, poético, político, e que possa ter tantos outros atributos mais, sem pensar que precisamos buscar maneiras de fazer que queiram nos aproximar de uma estética eurocêntrica. Já que, se nossas condições de trabalhos, de vida, de disputa de classes, não são iguais aos países da Europa, e as “artes circenses sempre estiveram e estão em sintonia com seu tempo” (SILVA, 2008, p.01) como o nosso circo seria, senão um reflexo do nosso tempo? “O Circo da Lona Torta” nos mostra uma das maneiras, ao dizer: “Essa lona é nossa!”. Obrigado, Trupe Lona Preta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JUNIOR, Geraldo Martins Teixeira . Dramaturgia, gestus e música Estudos sobre a colaboração de Bertolt Brecht, Kurt Weill e Hanns Eisler, entre 1927 e 1932. Tese de Doutorado, do Departamento de Artes Visuais, da Universidade de Brasília. 2014
MESQUITA, H. A. de. Corumbiara: o massacre dos camponeses, Rondônia, 1995. 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
SILVA, Erminia: “O circo sempre esteve na moda”. In: Daniel Lins;Beatriz Furtado. (Org.). Fazendo rizoma: pensamentos contemporâneos. 1ed.Fortaleza: Hedra, 2008, v. 1, p. 90-97.
Site do SESC SP: https://www.sescsp.org.br/programacao/o-circo-da-lona-torta/
MÚSICA CITADA:
João Nogueira e Paulo Cezar Pinheiro, “Minha Missão”, Álbum: Na Boca do Povo. 1980
[1] Rafael de Barros é doutorando em Artes Cênicas pela USP. Fundador do Grupo Circense “Exército Contra Nada”. Autor dos livros “Palhaço de Rua – A experiência de um artista latino americano – um estado de risco” e o infantil “Brasileirinho – Histórias de um Cavaquinho”. Contato: rafael.debarros@usp.br
[2] Sobre a Trupe: A Trupe Lona Preta surgiu em 2005, a partir da experiência em saraus e intervenções artísticas organizadas na zona oeste e sul de São Paulo, dialogando com associações de moradores da região, dialogando com associações de moradores da região, com movimentos sociais e culturais. O grupo é composto por pessoas que mobilizam diversas linguagens artísticas, como música, teatro, artes plásticas e cinema. Tal experiência coincidiu com o desenvolvimento de uma pesquisa sobre a linguagem do palhaço, o que incentivou ainda mais a prática de colocar em cena, tanto nos saraus como nas ruas, os esquetes criados coletivamente. Desde então, foram realizadas inúmeras apresentações circulando por centenas de bairros e comunidades da região metropolitana de São Paulo, Festivais Nacionais e Internacionais e também grandes circuitos culturais.
[3] Bertold Brecht foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Além das obras, desenvolveu peças que aplicavam suas reflexões, como o distanciamento. Com peças que colocavam no palco suas reflexões, trouxe diversas críticas ao mundo burguês e ao capitalismo. Inclusive nas maneiras com que encenava suas peças.
[4] “Popular” pode soar controverso. O que seria popular e o que não seria, certo? Aqui estou colocando no sentido que o Mamulengo, por exemplo, é uma cultura popular. Que o circo e a maneira como o espetáculo é conduzido utiliza linguagens populares. Isso não é, de forma alguma, um problema. Esse tema, sobre o “popular”, pelos próprios estudiosos do tema, é controverso, mas vale a leitura do: “O que é cultura popular, de Antonio Augusto Arantes.





Maravilha , adaptar o erudito, ao popular para criar laços humanos e distrair a alma da criança que vive em nós, Parabéns!!